- Regina Márcia Manicardi Vaz
E a família como vai? Vai bem, obrigada.

Num puxa-encolhe incessante, a família vem se manifestando nas mais variadas configurações na contemporaneidade, diferenciando-se do modelo da família nuclear moderno-burguesa de meados do século XIX. Mudou e vem se “ajeitando” pelas importantes transformações sociais que se sucedem: empoderamento feminino, direitos dos homossexuais, recasamentos, adoções e/ou diversas formas de fertilização assistida, “poder da fratria versus poder do patriarca” (Kehl, 2017). Tudo isso convoca uma reordenação na constituição do grupo familiar. Mas, e aí? Isso “danifica” ou inviabiliza a sua função?
A possibilidade de resposta a essa pergunta se constrói por reflexões acerca da função essencial do grupo familiar, enquanto grupo primário na constituição psíquica de seus membros. Daí a questão não fica restrita às configurações do grupo, mas à função dos vínculos no processamento da intersubjetividade. É por esse caminho de discussão que seguiremos agora.
“Nem tudo que muda, muda tudo”, frase-título do capítulo de Maria Consuelo Passos (2005) define um ponto de partida: mesmo se alterando em diversas configurações, a família se mantém em sua função na constituição psíquica de seus membros, por meio de vínculos específicos, não encontrados em outras configurações grupais.
Os vínculos específicos desse grupo, que incluem a parentalidade, a filiação e entre irmãos, são estudadas pela Psicanálise de Família. Mais precisamente, o interesse do estudo recai “pelo significado inconsciente da experiência que os membros da família têm da e na vida em família” (Mandelbaum, 2010, p.54). Vincular-se é estabelecer uma relação intersubjetiva com alguém, por meio de investimentos afetivo emocionais recíprocos, numa ligadura mais ou menos duradoura. A qualidade dos sentimentos envolvidos varia, mas seu investimento recíproco é fundamental para que caracterize uma vinculação tal como a psicanálise considera. Muitas vezes os vínculos são confundidos com sentimentos positivos somente, mas não é isso que acontece. Na família haveria, então, uma variabilidade de emoções presentes nos investimentos afetivos dos vínculos, tanto sentimentos de amor, como de ódio, por exemplo. Cada formação vincular - ser pai, ser mãe, esposo ou esposa, ser filho, ser irmão - determina uma experiência subjetiva, que por sua vez, constitui psiquicamente os sujeitos participantes do vínculo.
Além disso, o grupo familiar é primário na nossa experiência intersubjetiva e, por isso, “O grupo primário é o espaço e o processo em que o eu pode advir.”, como nos diz Kaës em seu livro Um Singular Plural (Kaës, 2011, p.15) para designar a importância da família na construção psíquica do sujeito. Essa função tão importante nos faz pensar também que tanto a saúde como o sofrimento psíquico podem advir do resultado dessa interação vincular, dependendo de um processamento positivo ou obstaculizado da intersubjetividade.
Nesse sentido, uma relação importante que podemos estudar é a do processamento dos vínculos familiares e a Psicossomática Psicanalítica. As manifestações somáticas do sofrimento psíquico, tal como é pensado por esses estudos, estão imbricadas numa possível carência representacional, e esta pode estar relacionada às falhas na constituição psíquica primária, que acontece, por sua vez, na família. Para a clínica psicanalítica essas considerações são muito importantes e determinam a escuta do paciente no sentido de seus vínculos. Como diz Safra (2006):
"Quando um analisando apresenta uma queixa ela é dele, mas é, ao mesmo tempo, uma queixa comunitária. A sua família também fala por sua voz. As questões de uma pessoa são também questões que atravessam a história de sua família e que se vinculam por meio de seu discurso. Este fenômeno é muito evidente para quem trabalha com famílias. O fato é que, em análise individual, temos a oportunidade de observar que, às vezes, quem nos fala é a mãe, o pai, o avô, por meio do paciente."
Cuidar do processamento dos vínculos permite que possamos contribuir com
a saúde psíquica do grupo familiar nas suas mais variadas configurações e para que possamos responder: e a família, como vai? Vai bem, obrigada!
Referências:
Mandelbaum, B.(2010). Psicanálise de família. (Coleção Clínica Psicanalítica/ dirigida por Flávio Carvalho Ferraz). 2ªed. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Passos, M. C. (2005). Nem tudo que muda, muda tudo. In Terezinha F. C (org). (2005). Família e casal: efeitos da contemporaneidade. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, pp. 11-23.
Kehl, Maria Rita (2017). A família tradicional é realmente o que queremos? Acesso:
https://www.fronteiras.com/artigos/a-familia-tradicional-e-realmente-o-que-queremos
Kaës, R. (2011). Um singular plural: a psicanálise à prova do grupo. (Trad. Luís Paulo Rouanet), São Paulo: Edições Loyola.
Safra, G. (2006). Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo: Edições Sobornost. (Coleção Pensamento Clínico).